Na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana existe um lugar que ficou parado no tempo. Quando América e África ainda eram um só continente, há quase dois bilhões de anos, uma montanha se ergueu. Passaram milênios, vieram os intemperismos, mas, acredite, nessa montanha pouco ou quase nada mudou de lá para cá. Hoje o Monte Roraima é considerado uma das paisagens com formações geológicas mais antigas do planeta. Justamente por isso atrai a atenção de turistas, cientistas e aventureiros que topam se embrenhar na savana venezuelana para desvendar o que há por trás de tantas lendas e tanto misticismo.
Dá para entender o porquê. Roraima não é uma montanha pontiaguda, extremamente alta e com o pico nevado, como costumamos imaginar. Ao contrário: ela tem um formato de mesa e não supera os 3 mil metros de altura. O que faz dela o “sonho de consumo” de tanta gente é exatamente tudo o que ela esconde lá em cima. As lendas mantidas pelos indígenas Pemon, que habitam a região, são o que garante que o Monte Roraima seja visto como o mais misterioso dos tepuis (como eles chamam as montanhas por lá). Há quem diga até já ter ouvido urros estranhos de criaturas desconhecidas. Mas, na verdade, os únicos seres vivos encontrados por lá são pássaros, insetos e anfíbios endêmicos, como o pequeno sapinho Oreonphynella Quelchii. Isso sem falar nos mais de 400 tipos de bromélias e 2 mil tipos de flores, algumas que só existem ali.
A caminhada
Há algumas décadas, conhecer de perto todo esse cenário se tornou um sonho possível. Operadoras de turismo organizam expedições e caminhadas de longas distâncias para quem quiser explorar as paisagens e os segredos do Monte Roraima. Com o apoio da comunidade indígena, os grupos encaram, pelo menos seis dias de caminhada em um dos trekkings mais bonitos e impressionantes da América do Sul.
O ponto de partida é Boa Vista, onde a Azul opera voos diários, com ligações para várias cidades do País. Os receptivos de turismo reúnem os participantes da expedição e oferecem transfer até Santa Elena de Uairén, a 230 km de distância, já na Venezuela. De lá, um 4×4 leva até a comunidade indígena de Paraitepuy, no Parque Nacional Canaima, onde a caminhada começa de fato.
Ainda na estrada já dá para ver o Monte Roraima e o Monte Kukenán, seu irmão, despontando ao longe na paisagem. A cada quilômetro andado vai ficando mais nítida a dimensão do desafio. Chegando à aldeia, é hora de calçar a bota, encher o cantil de água e encarar a trilha. Dali até a base da montanha, são 26 km a serem percorridos em dois ou três dias inteiros de andanças pela savana venezuelana, às margens do rio Tek e do rio Kukenán. Diferentemente do que acontece em outras caminhadas de longas distâncias, na do Monte Roraima não há infraestrutura de hospedagem, energia elétrica ou água encanada. É bom ter em mente que é preciso disposição e um quê de desprendimento. Luxo por lá é poder contar com a ajuda dos guias Pemon, que vivem na comunidade indígena e podem ser contratados como carregadores de mochilas e outros equipamentos, para aliviar o peso. As operadoras de turismo montam acampamentos, comandam a cozinha e organizam toda a logística necessária para os dias de expedição, para que você não precise se preocupar com nada além de caminhar.
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A subida
Só existe um caminho para chegar andando até o topo do Monte Roraima. Curiosamente, exatamente o mesmo que é usado desde o século 19, quando os exploradores europeus arriscaram subi-lo pela primeira vez. Demorou até que eles encontrassem um jeito de alcançar o cume. A missão era tão complexa que alguns aventureiros chegaram a dizer que o topo do tepui era “inacessível”. Mas, em 1884, os ingleses Everard im Thurn e Harry Perkins, acompanhados dos indígenas Pemon, provaram o contrário.
Não há porque mentir: continua não sendo fácil, mas também não é preciso ser nenhum atleta profissional para chegar ao topo. Estar bem preparado fisicamente e, principalmente, disposto a encarar o desafio já é mais do que suficiente – afinal, são 4,5 km de subida, feitos em mais ou menos cinco horas, caminhando quase o tempo todo sobre pedras. Entre um degrau e outro, vale a pena olhar para trás, recuperar o fôlego e admirar o visual da savana venezuelana.
A paisagem que te acompanha até o topo é bem diferente da dos primeiros dias. Agora, anda-se cercado de árvores e mais protegido do sol, na mata que cobre a base do tepui. Só depois de algumas horas, quando o paredão vai se aproximando, é que dá para sentir um friozinho na barriga e ter uma noção mais clara do que te espera pela frente.
O trecho final da subida também costuma ser o mais temido por quem decide encarar o monte. Com pedras soltas e escorregadias, o Paso de Lágrimas é mais íngreme e exige bastante atenção e cuidado, especialmente na época de chuva, quando uma queda-d’água se forma no meio do caminho. Nada que uma boa dose de coragem – sempre com responsabilidade, é claro – não resolva.
O topo
Você pode até ler relatos de viagem, ver fotos e vídeos e conversar com outras pessoas que já viveram a experiência. É clichê, mas é verdade: para entender o que é o Monte Roraima é preciso ir e sentir. Ao pisar no topo do platô, a sensação é de entrar no cenário de um filme pré-histórico. O solo pedregoso, a vegetação rasteira, as rochas empilhadas que desafiam a gravidade, a névoa que não deixa ver muito ao longe, o silêncio e a calmaria que chegam a ser incômodos…
A impressão é mesmo de ter encontrado O Mundo Perdido, descrito pelo escritor escocês Arthur Conan Doyle, em um de seus livros mais famosos. Criador do célebre detetive Sherlock Holmes, Doyle concebeu todo um cenário inspirado no monte sem nunca ter pisado lá, apenas lendo relatos dos primeiros exploradores e dos indígenas que habitam a região. Apesar de não ser um retrato fiel do tepui, é uma boa introdução para começar a entender toda a energia e o misticismo lá de cima.
Quem olha de baixo não faz ideia de tudo o que pode encontrar no topo do platô. São quase 34 km2 de área, muitos deles ainda praticamente intocados. Foi só em 1976, por exemplo, que o primeiro homem, o escritor venezuelano Charles Brewer-Carias, deu de cara com um enorme vale de cristais que existe no cume. E, não sendo suficiente, uma vez lá em cima, você ainda pode escolher entre ver o vaivém das nuvens no mirante La Ventana, subir o Maverick, o ponto mais alto da montanha, mergulhar nas jacuzzis naturais forradas de cristais, caminhar até o marco das três fronteiras, entrar em cavernas e, de quebra, encontrar pequenas quedas-d’água no caminho.
Mas vá sabendo que os “perrengues” — se é que podemos dizer assim — também fazem parte do pacote. Toda a estada é feita em acampamentos e o clima é uma caixinha de surpresas. De maio a outubro costuma ser a época mais úmida, em que você corre mais risco de fazer a caminhada debaixo de chuva e encontrar uma névoa sem fim. Entre novembro e abril, as chuvas costumam dar uma trégua, mas você não vai ter a chance de encontrar cachoeiras no caminho, por exemplo. Dá para se programar, mas nada garante que essas regras vão valer quando chegar sua hora de ir. Uma vez lá em cima, a montanha pode te presentear com as quatro estações do ano num único dia. Reza a lenda por lá que Makunaima, o guardião do monte, é quem comanda as condições climáticas conforme a sua vontade. Para os Pemons, a montanha é sagrada e se comunica com quem chega lá aberto para viver a experiência. Mesmo entre os mais céticos, não há como voltar duvidando disso.